Fonte: O Globo- Prosa On Line-23.04.2011
Num debate recente com a crítica Beatriz Resende, organizado pelo Instituto Moreira Salles, expus minha impressão de que o campo literário se encontra hoje numa situação de crise, observável pela relativa perda da capacidade cultural da literatura de se mostrar relevante, não apenas para mim, mas para muitos que estão comprometidos com a cultura: como se alguma coisa se introduzisse nela (sem eventos violentos) e a tornasse inofensiva, doméstica. Um vírus de irrelevância, por assim dizer. Não gostaria de defender uma tese cabal sobre a fraqueza atual da literatura, mas me agrada a ideia de explorar, tão fundo quanto possa, esse lugar de crise da expressão. Tento formular sucintamente a seguir, em diferentes ordens de argumentos, alguns dos impasses que percebo na literatura contemporânea.
Ocorre, hoje, uma impressionante expansão das narrativas no cerne da própria existência. Antes mesmo de existir como evento, a ação já se apresenta como narrativa, como ocorre nos reality show, em que as pessoas, antes de agir, representam ou narram a ação que lhes cabe. Ocorre também na multidão que fala pelos blogs e pelas redes sociais, ou se monitoram pelos celulares, de modo que a ação ou a conversa é sempre exibição/narração da conversa. É como se o mundo inteiro fosse virtualidade narrativa antes de ser existência particular, e principalmente como se todo mundo fosse interessante o bastante para ser visto/lido. Esse é um dos pontos não negligenciáveis que parecem retirar a prioridade ou a exclusividade da narração do narrador literário. É um problema basicamente de inflação simbólica.
Escrever literatura, para mim, entretanto, é um gesto simbólico que traz uma exigência: a de ser de qualidade. Literatura mediana é pior que literatura ruim, pois, mais do que esta, denuncia a falta de talento e a frivolidade. A literatura decididamente ruim pode ser engraçada, ter a graça do kitsch, do trash, da paródia mesmo involuntária e grosseira: pode ter a graça perversa do rebaixamento. Já a literatura mediana não serve para nada. É a negação mesma da literatura, cuja primeira exigência é a de se justificar (justificar a própria presença) face aos outros objetos de cultura. E o que eles exigem é que você os supere, que se apresente como novo ou não dê as caras por lá.
Fazer a lição de casa do ofício de escritor, ser esforçado, tampouco basta, como não basta ter vontade de fazer. Não adianta ser apenas um trabalhador, pois não se trata de adquirir direitos trabalhistas. Estou tentando dizer que escrever é muito competitivo. Boris Groys fala muitíssimo bem do assunto. Você escreve em língua portuguesa, então tem de se defrontar com vivos e mortos. Com os contemporâneos e com Vieira, Gregório, Machado, Rosa etc. Não há meio de não medir forças: a literatura exige a demonstração de força: não há como fazer apenas para participar.
O atual democratismo inflacionário das representações, que mencionei, tende a menosprezar o domínio técnico. Para mim, é um erro, desde que literatura, como toda arte, é em primeiro lugar techné , técnica, produção objetiva. Não basta ser conhecimento, tem de produzir o que não é, o que não há. Sem produção, não há arte: não há nenhum outro valor simbólico, de representação, que substitua o objeto. De outra maneira, a literatura está no campo da composição, em nenhum outro. Não há atitude, comportamento ou opção ideológica que permita saltar sobre os mecanismos da composição. Acho o menosprezo da produção objetiva, em favor do volume expressivo e representativo um grande atalho falho da produção contemporânea. Assim, para mim, rigor técnico significa a radicalidade construída dentro do discurso. Atitude resolve o problema do roqueiro, não resolve a questão da literatura.
Ocorre certo triunfalismo da produção contemporânea, que enfaticamente se nega a pensar seus impasses, ou enxerga neles apenas má vontade gratuita, tirania acadêmica ou conservadorismo crítico. Acho que essa recusa de sequer considerar a ideia de impasse tem qualquer coisa de cegueira deliberada. É como se o presente se absolutizasse e não mais admitisse um legado cultural como patamar exigente de rigor para a sua produção. No entanto, a condição da crítica e da criação é justamente a referência a um tempo que não é exclusivamente o do presente, mas o tempo de longa duração da obra da arte. Literatura pode ser descrita como o que resiste às disputas exclusivas do presente para existir como problema por muito tempo. Ela não tem como se fingir de recém-nascida, livre para não ter memória e amar integralmente a si própria como invenção de grau zero. Perdida a noção de herança cultural, perde-se a de crítica, de autocrítica e naturalmente a de criação.
Uma variante desse argumento é o seguinte: uma parte dessa cena contemporânea de crise existe por não haver qualquer disposição para a crise. Quem critica parece um vilão, um estraga-prazer, um intrometido. Quem critica as obras, ainda mais se faz isso com argumentos insistentes, tem qualquer coisa de indecente, de impróprio. Mas, por vezes, a insistência chata é fundamental para pensar um pouco melhor. Não se vai muito longe com um discurso que não admite contraditório, com um discurso de animação de parceiros. Mesmo em casos de parceria, sem alguma disposição para encarar a desafinação, não se vai longe: nessas condições, não há orquestra capaz de desconfiar de si mesma e exigir mais de seus membros. Espanta, pois, ver a intolerância para a crítica, como se fosse alguma traição pessoal. De onde vem essa ideia de parentesco traído? Pessoalmente, não vejo por que o crítico tem de ser animador, parceiro, divulgador ou chancela do escritor. Ele tem de apontar problemas no objeto, pois são problemas do objeto o interesse principal da arte, como da literatura.
Em termos de experiência pessoal de leitura, quase sempre (nem sempre, mas quase sempre) acho mais prazer textual, literário, em ler teóricos do que, por exemplo, ficcionistas ou poetas contemporâneos. Ou, de outra forma, a crise contemporânea me parece mais patente nos textos críticos dos que nos de ficção e de poesia. Acho que o que está acontecendo é muito mais do que uma crise de bons autores: é como se a literatura, entendida como ficcionalização autônoma, estivesse esvaziada. Poucos autores de literatura contemporânea me dão mais vontade de ler como teóricos tão diferentes entre si como Rorty, Davidson, Cavell, Agamben, Renato Barilli, Perniola, Sloterdijk, Jonathan Lear, Blanchot, Magris, Martha Nussbaum, Boris Groys... Há muita gente interessante pensando o contemporâneo e pensando literatura. Fico imaginando se essa não será uma forma de literatura disfarçada. Uma nova máscara da literatura.
Mas por que esse menor poder literário dos autores face aos teóricos? Isso aparece para mim como uma evidência, digamos, sentimental, afetiva, mas as suas razões não são claras. Mesmo em termos de domínio técnico de língua, entre os que citei —-, as invenções linguísticas de Rorty, com suas violentas trocas de vocabulário, ou as situações-limite da “teoria de passagem”, em Donald Davidson, por exemplo —-, me parecem mais radicais como invenção ficcional do que a narrativa dos tantos escritores mais ou menos conformados no esquema da prosa realista do século XIX.
A grande conquista da literatura do século XIX foi a sua autonomia ficcional, que se traduz basicamente por se tornar simbolicamente representativa do mundo ou expressiva do sujeito psicológico que a constitui. Quer dizer, restrição do âmbito técnico da imitação e hipersimbolização do real ou da subjetividade deram aos ficcionistas o seu estatuto contemporâneo. Neste início de século XXI, o processo se amplificou vertiginosamente: a identidade psicológica original em sua relação com o mundo hostil da mercadoria e não a distinção da própria invenção, enquanto invenção engenhosa, pretende ser a fonte da qualificação autoral. Será que dá para ser assim? Quem ainda acredita em representatividade, fora da discussão dos próprios critérios de representação? Quem jura ainda pela invenção da narrativa fora da construção de uma metalinguagem que coloque seus fundamentos sob crítica? Contar histórias, enfim, cansou? E poesia contemporânea, por que é quase sempre kitsch? Qualquer subjetividade pode ser um direito, mas parece igualmente expressão de banalidade.
Também, quando alguém diz que um autor é representativo, já não imagino boa coisa. Fosse bom, problematizaria a representação, a identidade “nossa”, do “eu”, a própria ideia de identidade; nos obrigaria a retroceder para fora de nossa experiência comum. Ou mesmo nos expulsaria do poético, envelheceria de um golpe os lugares comuns da invenção. Ele teria complicado o mundo representado, e destruído a subjetividade expressa. Mas quem está fazendo isso? Afora alguns poucos ficcionistas e poetas importantes, acho que outros estão fazendo essa bagunça melhor do que eles.
Enfim, são palpites que partilho aqui, não uma tese. Não quero advogar qualquer fim da literatura, mas não quero me poupar de discutir a sua relevância e pertinência no contemporâneo. A minha esperança é que a exposição crítica, a rudeza do trato — o chão duro da fricção, como dizia Wittgenstein — ajude a coisa a andar.
ALCIR PÉCORA é crítico literário e professor da Unicamp