Pois é. Eu disse que não ia postar mais textos de minha autoria e cá estou. Faz dois dias que tento encaixotar minha mudança para o deserto da Judéia e faz dois dias que toda minha pequena casa está espalhada pelo chão, faz dois dias que não tenho por onde andar e que firmo o pé no piso de azulejo possível. Faz dois dias que abri os armários, joguei tudo que havia dentro deles no chão, porque achei que era a única saída para a mudança começar a acontecer e o máximo que consegui foi ficar na cama, único espaço possível, escrevendo e fumando, sem parar. Sim, eu fumo. Sim, eu escrevo. Invejo essa gente que fuma e não escreve ou essa gente que escreve e não fuma. Eu escrevo e fumo. Fumo e escrevo. Lavei a louca. Essa palavra maravilhosa sem cedilha que solta bolinhas de sabão na pia imunda. Eu tenho saudades do tempo que em via o Plinio Marcos descer a rua da Consolação a pé e a gente dentro do bar dizia rindo: Olha, o Plinio Marcos!
Hoje realizo um sonho antigo: escrever "Oh Valsa latejante"!
O mote surge com a morte, hoje, do José Mindlin, o bibliófilo. A mudança fica para mais tarde pois creio ser um dever cívico cultural contar a história do meu desastrado encontro com o Mindlin.
Então, sabe lá em que era glacial estávamos, eu recolhia entrevistas sobre as livrarias antigas de São Paulo. Tenho depoimento e texto inédito do Antonio Candido, que, ao me atender, abriu a porta para que ninguém mais pudesse me dizer não, não posso atendê-la. Do António Candido - cujo original eu deixei com o Amilcar Torrão quando parti do Brasil- fui contemplada com uma tarde e um depoimento e bolachinhas sem igual na mesa de jacarandá da casa do Pacaembu do Décio de Almeida Prado. O maravilhoso texto do Décio saiu integral no Caderno Dois do Estadão e para garantir uma permanência a mais, creio que o doei para a Marisa Lajolo, que possui estudos na Unicamp de Memória da Leitura. Dali do Pacaembu parti para o uma longa entrevista e uma longa amizade, no Rio de Janeiro, com o Plinio Doyle. O resumo desse encontro saiu em uma matéria na Gazeta Mercantil. Nem sei se esse jornal existe mais tão longe me encontrol. Para que eu fazia todas essas entrevistas? Para nada. Sempre fiz coisas interessantes em troca de uma boa conversa coisa que me garantia passar o tempo no que eu julgava ser uma forma menos burra de enganar o tédio.
Foi com esses cartões de visita anteriores, portanto, que o sr. José Mindlin, reservou uma manhã para me dar uma entrevista em sua casa, dentro da sua famosa biblioteca. Adianto, desde já que foi uma lástima, salvo que minha mãe foi me buscar e me levou num restaurante indiano chiquérrimo que havia ao lado da casa do Sr Mindlin, chamado Ganesha. Fechou, acho.
O senhor Mindlin me atendeu na sala, com sofás e estantes brancas que iam de parede a parede. Alertou-me que ali ficavam seus livros preferidos ou mais raros. Todas aquelas lombadas encadernadas e bem dispostas causou-me uma certa infelicidade e minha indisposição frente à tamanha beleza causou-me uma impressão incomoda de mim mesma. Só anos mais tarde, quando me inteirei da bagunça caótica do escritório do Haroldo de Campos na rua Monte Alegre e também da confusão insandecida do lugar ( diga-se, mesa) onde o João Ubaldo escreve é que pude sorrir aliviada do horror que senti na organizada biblioteca do sr. Mindlin.
A entrevista foi, como antecipei anteriormente, catastrófica. Tenho as fitas gravadas. Sim, cassetes, guardadíssimas. Nunca as escutei de novo. Eu havia chegado ao sr. Mindlin, um sujeito simpático, pacato, uma delicia estar com ele, aliás, com um objetivo que ele jamais poderia supor enquanto me convidava para sentar ao sofá: eu queria entrevistá-lo, assim expliquei, porque você é minha única fonte sobre Rubem Borba de Moraes. E continuei: quero saber sobre como você adquiriu os livros do Rubem Borba que formam a essência mais rara da sua biblioteca, expliquei educadamente.
Eu sabia como os livros tinham sido adquiridos. Rubem Borba, já sem dinheiro e sem saúde, foi vendendo livro por livro para o Mindlin, mas eu queria os detalhes das histórias das compras dos livros do Rubem Borba de Moraes, o maior bibliófilo que o Brasil já teve antes do Plinio Doyle, grande amigo meu e de todo o resto do mundo ( uma festa esse Plinio Doyle, era só ir chegando).
E aconteceu que o sr. Mindlin se desencantou da entrevista imediatamente. Levantou-se do sofá e caminhou em direção a sua vasta estante me dizendo que ele possuia raridades que precisa me mostrar. Do Rubem Borba, perguntei. Não, não, olha esse livro e estendeu a mão para pegá-lo, venha até aqui ver. Um livro muito, muito raro. E o senhor Mindlin abrindo a capa belamente encadernada me mostrou aquela lindeza:
- Está vendo? Livro rarissímo do Sergio Milliet, edições Gaveta, Oh Valsa Latejante! me mostrando a capa beje e macia com as letras pretas.
Eu sorri. Ah, sr Mindlin, eu tenho esse livro e autografado. E ele então, não se deu por rogado, e como quem conhece livro por livro da sua biblioteca caminhou até uma estante onde ficava um livrozinho: esse aqui então é mais raro! Olha! e o titulo me dizia: Domingo dos Séculos: Rubem Borba de Moraes. ah, disse eu, esse também tenho e autografado também!
Mas você tem tudo, disse-me então o sr. Mindlin, desconcertado. No que eu respondi, não, não, eu só tenho esses dois. E foi assim que terminou nossa entrevista.
Onde foram parar meus livros e porque eu os tinha. Bem, o Oh Valsa Latejante, eu dei de presente para o Marcello Moreira. Marcello também esta com o uso capião do meu exemplar da História da Literatura Brasileira do Varhagem. Primeira edição preciosa que o Plinio Doyle ofertou para a inauguração da Casa do Livro Azul: livreiros antiquários e que na devassa da livraria e da minha infinita história com o Luiz Puech, ficou comigo. Os outros dois livros citados perfazem o mesmo caminho. Ficaram comigo na devassa da devassa. O Domingo dos Séculos, acabei trocando com o Garaldi, também livreiro, por uma primeira edição do Mário de Sá Carneiro, infinitamente rara e que eu ofertei para o Rui Moreira Leite e não tenho mais a mínima lembrança do título da obra, só me recordo que era algo impossível ao Rui que eu tornei possível num piscar de olhos do Garaldi, que se divertiu com o meu ato de generosidade, já que eu não tinha um gato para puxar com o rabo, enquanto o sr. Rui Moreira Leite possuía mil gatos gordos e castrados e bem alimentados.
Mas voltando ao Mindlin. Acabei, sem querer, causando um impacto enorme no Professor Antonio Candido, numa outra visita e conversávamos alegremente numa tarde paulistana no seu novo apartamento na rua Joaquim Eugênio de Lima com flores na escrivaninha. Naquele ano, o professor faria 80 anos. Creio que foi uma visita de aniversário. O professor Antonio Candido sempre gostou de mim e eu sempre gostei de fazê-lo gargalhar com minhas histórias enquanto cruzava as pernas e me ouvia atentamente.
Aliás, foi uma das poucas pessoas que sempre me ouviu e por isso eu voltava sempre. Naquela época, me fazia muito bem que ninguém me dava muita trela e o professor me ouvia. Ouvia e ria. Creio que me recebia, era sempre ocupado, porque ria muito. Eu nunca fui engraçada. Ele ria porque gostava das minhas observações sobre tudo e todos que pertenciam ao mundinho dos escritores e da crítica literária. E foi numa dessas conversas que falávamos sobre a importância de ser leitor, que ser leitor era tão complexo quanto ser escritor e que bons leitores, assim como bons escritores, eram tão raros e etc e tal e o professor, muito comedido, com aquele seu português entoado de educação, comentou:
-Sabe que o Mindlin é um grande leitor? Todos os dias lê no carro na ida e na volta do trabalho, porque o trânsito é muito, de maneira que então ele vai no banco de trás lendo enquanto motorista guia...
Era demais para os meus brios butantã-Usp, linha que eu conhecia de cabo a rabo, de Santana até a Usp, rua por rua, viela por viela entre a Casa Verde e a cardeal Arco Verde em Pinheiros, perdendo grampos e amassando as páginas xerocadas no ônibus lotado de estudantes que como eu, lutavam apenas por um lugar vazio.
- Grande leitora sou eu que leio no ônibus, professor, não o Mindlin!
Naquele dia o professor não riu. Ficou impávido. Se ajeitou na poltrona e colocou as mãos nos queixo como quem aprendia alguma lição interessante de sociologia . E mudamos de assunto.
4 comentários:
Estive ontem olhando para o corpo dele. Um último olhar. Também estive na biblioteca dele, os movimentos sempre iguais. A mim, tocou uma poesia concreta do século dezesseis. E a limonada. Proust. E 'não faço nada sem alegria."
de Montaigne. Aliás, ele morreu no dia que Michel nasceu, com alguns séculos de diferença. Beijos.
Eu queria me fixar no nosso protocolo de leitura baseado no equilíbrio difuso dos ônibus universitários. Sempre li (lemos, aliás) no ônibus, fosse no Butantã USP, fosse no 21 de Paris, esses ônibus burocráticos do Primeiro Mundo que não dizem aonde vão. Li e corrigi muita prova também, acho que por isso até hoje não consigo fazer um C de certo ou um X de errado que prestem. Creio que por isso temos uma leitura "balançada" dos textos, podemos ir e vir neles de acordo com os solavancos do pensamento.
Descanse em paz, Mindlin.
Amlcar
PS: Também estive por meios tortos na famosa biblioteca, ainda com d. Guita viva. O que mais me impressionou é que d. Guita me comentou que tinha perdido uma 1ª ed. da Recherche de Proust para os cupins. Isso me deu um medo terrífico, pensei que se os cupins não respeitvam d. Guita e seu José, e uma 1ª d. de Proust, que seria de minhas edições baratas de sebos e ofertas??? De momento, sigo sem baixas.
Amilcar
Mindlin...sei.Venho de Rubens(sim querida....é RubeNS Borba de Moraes), o cidadão de lá onde a gente chamava Atibaia/Bragança, casa em que o velho amigo me recebia sempre.
Gatos escaldados, estamos todos forros de tanta empáfia e soluçando para que esses conteúdos livrescos cheguem ao povo como os biscoitos finos de Mestre Oswald.
Mindlin morreu. Viva o Mindlin! Que D'us o tenha em paz.Grandes almoços, com ele e Dona Guita.
Na única vez que efetivamente pôde me auxiliar, não o fez.Mas também nunca comprou um livro meu sequer lá na Casa do Livro Azul.Dizia que meus livros eram caros.
Sim raros e caros. De queridos, claro.
Mudanças à parte, sigo meu caminho agora plantando cajus e pimentas na esquina do Rio Grande do Norte com o Ceará.
Grande beijo, Lp
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