domingo, 27 de junho de 2010

Saramago e anti semitismo

Estou, enfim, lendo Caim. Ontem dormi na página vinte. É claro que estou gostando. Posso me dar ao luxo de dizer que sou leitora de Saramago. Alguns de seus livros li e reli até a exaustão, até poder citar cenas sem a menor parcimônia como se uma passagem de Saramago ou estar em Tatuí fosse a mesmíssima coisa. Evitei Caim até onde consegui. Saramago é um escritor que influência na minha escrita narrativa: volvo e revolvo a língua portuguesa com Saramago. Um amigo me escreveu, tão logo Saramago passou a não respirar, que o Alcir Pécora disse numa entrevista que Saramago não era tudo isso. Não sei se é verdade, não escutei e esse meu amigo me garante que o Alcir Pécora não gosta dele, amigo. Eu morro de inveja do Alcir Pécora. Eu tenho uma lista de pessoas que me dizem: o Alcir Pécora não gosta de mim. Todos escritores. Dessa lista eu já briguei e já fiz as pazes com pelo menos a metade deles. Briguei de brigar mesmo, de virar a cara, de aprontar. Alguns não me perdoaram; de outros, recebi abono. Troco cinco James Joyce por uma boa briga e ainda de quebra lanço uma Pedra do Reino quando a pessoa vira de costas, indo-se. Adoro livros e tijolos e tenho preferência por livros deste formato. O Alcir Pécora é uma flor de criatura perto de mim. Nunca ouvi dizer que ele é briguento, que não é flor que se cheire ou que é grosseiro. Queria eu que as pessoas dissessem em chororô: a luciana gama não gosta de mim. Mas a luciana gama praticamente não existe e o alcir pécora é um fato. Talvez entre eu e ele possamos ponderar a diferença entre a expressão galinho de briga e briga de galo. Eu cego prá valer. Brigo com todo escritor vampiro que se aproxima de mim. Eles costumam vagar pela noite, em bares específicos, sugando histórias dos simples mortais que tomam cervejas e no dia seguinte seguirão anõnimos como personagens de escritura. Quero deixar bem claro que conversas que eu posso ouvir em mesas de bar com pessoas interessantes dentro não me servem como representação literária já que  para tanto basta ir ao bar da esquina. Eu gosto de ler. Passar frases inteiras do bar da esquina para o papel não é literatura, é vampirismo. Também não suporto leitores que não vão ao bar da esquina mas ficam em casa lendo essa literatura que seu medo do mundo alimenta como literatura. Sim, eu sou brutalmente criteriosa e rachei de rir com a declaração do Pécora sobre Saramago. Mesmo que não seja verdade do meu amigo, eu gostei da história, porque ela cabe na boca do Pécora, esse cordeiro na pele de lobo. Samarago era tudo isso sim senhor. Concordo que Ensaio sobre a Cegueira é uma bosta e aqueles diários de Lanzarote de fechar-se na página um mas o que ninguém disse ainda é que Saramago pulou Vieira no jogo céu inferno da literatura dele. Rendeu-se à Camões, mil vezes ao Fernando, mas conseguiu o feito extraordinário de saltar por cima do Padre imperador da Lingua Portuguesa. Talvez, o Pécora saiba disso, assim como eu sei porque sou leitora voraz de Saramago. Vieira deve ter sido a Clarice Lispector de Saramago, ou seja, aquele escritor que quando a gente lê se questiona dolosaramente se não se está tudo alí, não havendo necessidade de dizer o que dito, às claras, já está. Obviamente que estou me referindo aos contorcionismos miraculosos da língua portuguesa em Vieira. Eu também fico atéia de palavra quando visito Vieira, esse fazedor de sombras em nosso  português a haver.
Saramago era amargurado, enjoava nas curvas de sintra e sentia o fígado aos ver pasteis de santa clara, por certo: era escritor, conhecia a vida por obrigação de vivê-la, não sendo fugitivo que se esconde em livros ou mesa de bares. Eu conheci Saramago, eu sei. Levando-se em conta que sou possuídora de talento raríssimo para desnortear pessoas sobre o que eu realmente vivenciei e o que foi vivenciado por mim realmente, suponhamos que eu tenha conhecido Saramago durante sete segundos e duzentas e oitenta nove páginas de livro, coisa que assim se deu: cheguei em Portugal, vinda de navio, nas comemorações do terceiro centenário do Padre Antonio Vieira. Todo mundo sabia disso, menos eu. Só me dei conta porque fui parar numa missa, no bairro alto, para o padre. Não era missa, era congresso. Mas era missa. E fui porque tinha salgadinho. Nessa época eu acreditava que bolinhos de bacalhau originais e tradicionais não eram os feitos na Lisboa Ocidental vulgo bar do mané portuga na esquina da cardeal Arco verde com a Fradique Coutinho em São Paulo. Dali da missa, do bairro alto, da rua do alecrim, até me sentir sardinha enlatada num comboio barco no tejo para Almada, entrei no meu quarto e dei para ler Saramago durante oito dias consecutivos. assim que cheguei no que será então minha casa portuguesa havia dois Saramagos na estante da sala. Almocei e jantei História do Cerco de Lisboa mas o outro a minha espera não me moveu dali: passei mais quatro dias trancafiada saboreando o Evangelho Segundo JC. Sim, era minha forma de absorver Portugal com a missa bolinho frio de bacalhau sem gosto mas com Vieira. No domingo, logo pela manhã, não havia mais Saramagos na estante para mim e fui dar uma volta. Entrei num taxi. Me leve para qualquer lugar, não conheço nenhum. O motorista achou por bem me levar para Cascais, cassinos, taximetro e tal. Mas no primeiro farol fechado emparelhamos Saramago e eu, carro a carro. Gritei de dentro: Saramago! o escritor assustado, assustou. Dei acenos e sorrisos. Ele se refez do susto e acenou numa primeira engatada. Só nos reencontrariamos de novo no Memorial do Convento mas essa é outra história. Eu gostei daquilo, daquilo de assustar o escritor que me assustava, bu Saramago, tô te lendo, caderno rosa purpura de Cascais.
Mas chegamos onde eu não queria: onde eu acho que devo me posturar: eu confesso que sempre achei que Saramago estava gagá quando fez declarações sobre Israel, país que em dá guarida, casa, comida e namorado. Então, nunca dei muita atenção ao fato. Em todas as livrarias por aqui há Saramagos em inglês, em Hebraico para todos os lados, todos os títulos. Que as declarações tivessem vindo do senso comum, eu até compreenderia, mas não vindo de um intelectual. Israel hoje pode ter um governo que eu e mais uma tonelada de gente aqui não concorda mas isso não significa que Israel não tenha uma bela formação sindicalista, democrática que permite que o sistema funcione confortavelmente para seus cidadãos: estou falando de bens comuns como saúde e educação em fases de governos que eu discordo como esse de Netaniahu, por exemplo. O fato desse governo israelense de direita não estar nesse momento construindo uma história que a meu ver não é dignificante não apaga a história de Israel com seus sindicalistas, politicos, sionistas que construiram o país que eu habito hoje e muitos palestinos também. E palestinos sorriem nas ruas aqui, trabalham, dividimos os mesmos ônibus, as mesmas filas e são alegres e falam alto como os israelenses. Na prática do mercado da Cidade Velha, tirando os religiosos com suas fardas, não se sabe quem é palestino quem é israelense. Eu namoro um palestino e tenho amigos aqui religiosos, ateus, israelenses e árabes, eu sei do que estou falando, da vida viva em Jerusalém, da vida que acontece fora dos extremismos dos jornais que circulam pelo mundo. Infelizmente, lendo as primeiras páginas de Caim tive a certeza de que Saramago, nas declarações sobre Israel, não estava gagá. Velhinho gagá não escreve Caim. Que belo livro. Quarta feira eu vou fotografar Amos Oz. Amos Oz, esse  escritor fabuloso, comentou as declarações de Saramago: "Esta é hoje a comparação preferida dos antisemitas em todo mundo. Saramago demonstrou uma cegueira moral incrível. Como integrante da esquerda, como alguém que luta pelo direito do povo palestino a um Estado independente junto a Israel, vejo as declarações de Saramago como um golpe na cara as  vítimas dos nazitas, dos pacifistas em Israel e toda a humanidade”. Ademais - para usar uma palavra pecoriana- Saramago deveria, ao menos, alguma espécie de gratidão ao povo que inventou a personagem principal do seu derradeiro livro. Convenhamos assim.



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