"Liberdade de fome e sede/da ambulante prisioneira./Não é que ela busque o difícil: é que a sabem capaz de pedra." (João Cabral de Melo Neto In Poema(s) da Cabra)
Não que eu não desejasse uma tarde cabralina no deserto da Judéia. Simplesmente, não esperava que pudesse ser tão bom, caminhar, sentar, conversar com os beduínos. Nem quando morei na caatinga baiana estive tão misturada entre as pedras e as cabras como hoje. As ovelhas estavam lá também. Quietinhas. Como são silenciosas as ovelhas, como são comportadas, não dão trabalho aos pastores. Em compensação as cabras são uma confusão. Hoje descobri que pastorear cabras é uma tarefa árdua, elas vão que vão, se dispersam em grupos e quando você repara estão todas em todos os lugares e sempre montanha acima. Mantê-las juntas não é tarefa fácil.
Passei, então, algumas horas com quatro pastores: Ali, Mohamed, Ahmad e Abu. Como eu havia previsto eles também me observaram por vários sábados, sempre a mesma hora, no mesmo lugar, fotografando seu pastoreio. Eu, sempre meio ao longe, no alto de uma montanha. Todo sábado. Aqui:
Então hoje uma cabra veio ao meu encontro. Ahmad veio atrás com seu burrico. E pudemos sorrir um para o outro. Ele desceu do jumento e eu pude lhe mostrar as fotos que venho fazendo faz dois meses. Ele ficou muito agradecido e perguntou se eu queria acompanhá-lo. Esperava dois meses por esse encontro, fui. Este é Ahmad no deserto da Judéia, beduíno Jahalin. Aviso que os beduínos não se deixam fotografar. Ainda não descobri porque. Mas adoram câmeras e fazer fotos. Ahmad queria que eu subisse no burrico. A hospitalidade começou aí. Eu não aceitei só porque imaginei que amanhã não conseguiria andar. Eu ri, negando. Ahmad achou graça na minha risada. Ele me perguntou num árabe remoto, denso e soletrado da onde eu era. . Eu disse Brasil, ele sorriu muito: Futebol. Uma palavra anjo, uma palavra gol de placa. Jogada celestial no deserto da Judéia. Os beduínos me mostrando sua malícia e sua raça.
Então acompanhei Amahd colina abaixo. Algumas cabras mézaram a tarde inteira enquanto eu conheci os outros três: Ali, Abu e Mohamed, um lider daqueles três pastores, ao menos, entendi assim. Depois descobri que foi Mohamed que disse para Ahmad trazer a cabra e e eu para perto deles que me esperavam embaixo de uma árvore com café árabe feito na hora, com fogo fátuo, nascido da areia. Levantaram-se quando cheguei, abrindo os braços e indicando para me sentar com eles. Mohamed quis ver minha câmera. Entreguei. Ele gostou desse ato e se tornou o fotógrafo do dia. Coloquei a câmera no automático e mostrei para ele, aperta aqui. Mohamed é o lider deles. É um moço muito forte, com os músculos delineados, dentes lindos e olhos ferinos, esverdeados. Ele é o dono dos camelos e das ovelhas que fotografo aos sábados. É menos docíl do que os outros e mais ligeiro também. Sua beleza causou-me uma profunda impressão de que queria fotografá-lo de qualquer maneira e que vai ser uma operação delicada, conquistada. Prefere ficar com minha máquina e me fotografar. Líder. Eles me receberam para um café nesse vale, embaixo dessas árvores:
Então, Mohamed, o fotógrafo registrou e roubou minha alma:
Sobre Cabras. Em casa, pastavam solenes. Um lugar onde eu posso plantar meus amigos, meus livros e nada mais:
Consegui fazer uma única imagem de Mohamed, por fim, sem ele perceber. Sábado que vem combinamos de nos encontrar para a entrega das fotos em papel. Ficaram felizes com o presente. Eu também. Cantaram em despedida para mim. Eu, emocionada, vi a esperança- essa coisa intelectual para mim e pro Zé Rodrigues- com muito menos óculos.
Um comentário:
Muito Bom!
Postar um comentário