sábado, 24 de abril de 2010

Pastoreio de Cabras com os Beduínos Jahalin



"Liberdade de fome e sede/da ambulante prisioneira./Não é que ela busque o difícil: é que a sabem capaz de pedra." (João Cabral de Melo Neto In Poema(s) da Cabra)

Não que eu não desejasse uma tarde cabralina no deserto da Judéia. Simplesmente, não esperava que pudesse ser tão bom, caminhar, sentar, conversar com os beduínos. Nem quando morei na caatinga baiana estive tão misturada entre as pedras e as cabras como hoje. As ovelhas estavam lá também. Quietinhas. Como são silenciosas as ovelhas, como são comportadas, não dão trabalho aos pastores. Em compensação as cabras são uma confusão. Hoje descobri que pastorear cabras é uma tarefa árdua, elas vão que vão, se dispersam em grupos e quando você repara estão todas em todos os lugares e sempre montanha acima. Mantê-las juntas não é tarefa fácil.


Passei, então, algumas horas com quatro pastores: Ali, Mohamed, Ahmad e Abu. Como eu havia previsto eles também me observaram por vários sábados, sempre a mesma hora, no mesmo lugar, fotografando seu pastoreio. Eu, sempre meio ao longe, no alto de uma montanha. Todo sábado. Aqui:





Então hoje uma cabra veio ao meu encontro. Ahmad veio atrás com seu burrico. E pudemos sorrir um para o outro. Ele desceu do jumento e eu pude lhe mostrar as fotos que venho fazendo faz dois meses. Ele ficou muito agradecido e perguntou se eu queria acompanhá-lo. Esperava dois meses por esse encontro, fui. Este é Ahmad no deserto da Judéia, beduíno Jahalin. Aviso que os beduínos não se deixam fotografar. Ainda não descobri porque. Mas adoram câmeras e fazer fotos. Ahmad queria que eu subisse no burrico. A hospitalidade começou aí. Eu não aceitei só porque imaginei que amanhã não conseguiria andar. Eu ri, negando. Ahmad achou graça na minha risada. Ele me perguntou num árabe remoto, denso e soletrado  da onde eu era. . Eu disse Brasil, ele sorriu muito: Futebol. Uma palavra  anjo, uma palavra gol de placa. Jogada celestial no deserto da Judéia. Os beduínos me mostrando sua malícia e sua raça. 






Então acompanhei Amahd colina abaixo. Algumas cabras mézaram a tarde inteira enquanto eu conheci os outros três: Ali, Abu e Mohamed, um lider daqueles três pastores, ao menos, entendi assim. Depois descobri que foi Mohamed que disse para Ahmad trazer a cabra e e eu para perto deles que me esperavam embaixo de uma árvore com café árabe feito na hora, com fogo fátuo, nascido da areia. Levantaram-se quando cheguei, abrindo os braços e indicando para me sentar com eles. Mohamed quis ver minha câmera. Entreguei. Ele gostou desse ato e se tornou o fotógrafo do dia. Coloquei a câmera no automático e mostrei para ele, aperta aqui. Mohamed é o lider deles. É um moço muito forte, com os músculos delineados, dentes lindos e olhos ferinos, esverdeados. Ele é o dono dos camelos e das ovelhas que  fotografo aos sábados. É menos docíl do que os outros e mais ligeiro também. Sua beleza causou-me uma profunda impressão de que queria fotografá-lo de qualquer maneira e que vai ser uma operação delicada, conquistada. Prefere ficar com minha máquina e me fotografar. Líder. Eles me receberam para um café nesse vale, embaixo dessas árvores:

Então, Mohamed, o fotógrafo registrou e roubou minha alma:



Sobre Cabras. Em casa, pastavam solenes.  Um lugar onde eu posso plantar meus amigos, meus livros e nada mais:















Consegui fazer uma única imagem de Mohamed, por fim, sem ele perceber. Sábado que vem combinamos de nos encontrar para a entrega das fotos em papel. Ficaram felizes com o presente. Eu também. Cantaram em despedida para mim. Eu, emocionada, vi a esperança- essa coisa intelectual para mim e pro Zé Rodrigues- com muito menos óculos.







terça-feira, 20 de abril de 2010

Sobre Cadeiras e Ventos do Bem

"- Te peguei, niilista! O sedentarismo é justamente o pecado contra o espírito Santo. Apenas os pensamentos caminhados têm valor. Só se pode pensar e escrever sentado." ( Nietzsche)



Sentar em cadeiras é um dos próprios do homem que mais é dificultoso para mim. Odeio sentar. Sou uma pessoa afobada, atarantada, tenho bicho carpinteiro e não consigo assistir televisão apenas porque tenho que sentar. Sentar para mim é sinônimo de estar parada. Não gosto de ir ao cinema também. Sei que soa tosco. Mas é assim.
Nunca gostei de nada que nos obriga a sentar: assistir aulas e estudar e escrever. As duas últimas coisas eu só faço deitada ou em posição de leitora da corte francesa. Sou peripatética. Escrevo andando. É um tormento quando termino de escrever e tenho que sentar para colocar opensamento em desenho de letra. Sentar, definitivamente, não é um protocolo justinho para mim.
Também não gosto de ármários e tenho horror por paredes. É um tipo de privacidade que não me diz nada. Nem mesmo para ir ao banheiro. Adoro entrar para morar em casas vazias, essas, sem ármários. Odeio guarda-roupa, armário de cozinha, uma vida projetada, vamos dizer assim.
Mas cadeira é meu calcanhar de Aquiles. Daí meu gosto pela fotografia que me obriga a ficar zanzando, bater perna. Escrevo copiosa e verborragicamente, mesmo assim. Sei que sou uma máquina de escrever. Todas as minhas mesas tem que ser enormes. Agora, adquiri uma de um metro e meio de comprimento, estamos felizes, eu e ela. Mas havia a questão da cadeira. Claro que meu(s) oficio(s) me obrigam a ter uma cadeira confortável.
Fui ver o preço. Daria para comprar umas duas ou duas e meia mesas iguais a que comprei. Desisti, simplesmente, porque odeio cadeiras, imagina, comprar uma. Foi fácil. Faz quase dois anos que moro em Israel e escrevo e leio na cama. Dois notebooks me acompanham. Ligados full time.
Duas ou três semanas atrás achei uma cadeira boa, dessas pretas, fortes, que giram de lá para cá, me esperando em frente ao lixo. Já escrevi um post aqui no blog sobre o lixo em Israel. Não é exatamente lixo: as pessoas deixam em frente ou perto coisas que não vão usar mais para quem necessita: livros é coisa comum. Enfim, tenho um post sobre isso aqui, provavelmente de 2009.
A cadeira estava um pouco capenga, não muito. Faltava uma rodinha que eu imediatamente substituí por um tijolo de dolomita enrolado lucianicamente com durex. Funcionou. A cadeira ia e vinha. Com a mesa nova, espaçosa e já bagunçada, a tal da cadeira começou a me incomodar. Nada demais. Apenas me incomodava olhar para ela com aquele tijolo como ornato. Ontem, feriado, não resisti: voltei a cadeira para o lugar que encontrei no lixo. Não sem antes desenrolar a prótese de tijolo. Queria entregá-la exatamente como a achei. Sou generosa mas, literal. Causo algumas confusões nas pessoas com duas características tão disformes, juntas. Vamos dizer que sou uma cangaceira altruísta, uma brasileira pé duro, adorável.
Enquanto trabalho, todos os dias, ando pela casa, abro a porta da rua, ando até a esquina e volto. Tudo ao mesmo tempo. Só não posso e não consigo ficar parada. Num desses vai e vem resolvi ir até o lixo da rua para ver se a cadeira estava lá. Estava. Levei um susto. Pisquei duas ou três vezes e me certifiquei que não estava pirada. Mas me senti bem doidinha por um átimo. Havia uma cadeira novinha, com plástico e tudo e rodinhas no pé. Inverossímel, eu sei, mas era para mim.
Por que? Muitas hipóteses. Poderia dizer que aqui é Israel e alguém deixou uma cadeira melhor no lugar para que eu mesma pegasse. Essa hipótese não é impossível aqui. Outra: alguém viu a cadeira que deixei e se lembrou que havia uma em casa sem serventia, aproveitou o ensejo e jogou fora. Mais uma, parecida com a anterior: trocaram as cadeiras. A minha ex não estava lá, a outra, igualzinha estava: alguém se divertiu fazendo isso, uniu o lixo ao agradável. Mas a hipótese de que mais gosto é a de que um vento bom do deserto passou por ali e me deixou um recado mais ou menos assim: "Toma sua cadeira. Você merece uma cadeira nova."