sábado, 26 de setembro de 2009

janelas abertas n°4


Samira, a gata, aquela que eu cismei que trazia presságios em tempos de vacas magras, apresentou minha janela para um conhecido. Ele é ruivo, muito mais arisco do que Samira ( que nessas alturas do campeonato já me deixa acariciá-la, mas continua sem entrar em minha casa) sendo que não posso fazer menção de nenhum movimento mais próximo que ele sai correndo. No entanto, ela o trouxe, eu vi. E agora se encontram na minha janela. Acham que dividem o leite, ou talvez não, talvez houvesse uma conspiração cósmica para que eu dobrasse os potinhos de margarina. Yossef, este é seu nome, é um gato askenazi, israelense, judeu. Depois de estudar com olhos muito atentos a desenvoltura de Samira no parapeito da janela resolveu dar uma passo adiante, e, ao contrário dela que faz carinho, come e vai embora, ele não faz menção de afeto explicito: se farta de leite exatamente como ela mas dorme na janela. Não vai embora. Deita no parapeito e descansa olhando para dentro, medindo cada movimento meu. Emana longas piscadas do seus olhos e ressona sossegado e atento. Um guardião.
Quando Yossef chegou pelas patas de Samira pensei que deveria assumir também a presença dele. Afinal ele não é um gato qualquer, é um gato grato, que me doa companhia. Ainda com uma certa intuição de que Samira era um recado benfazejo achei que dois gatos, então, era recado duplo. E era mesmo.

Ganhei, através de um doador amigo que me inscreveu numa ONG, duas cestas básicas por mês além do passe livre para o ônibus. Essa semana vi a cesta básica entrar, e, havia tanto leite nela, além de queijo cottage, manteigas, kashe, champignon, azeitona, milho, uma quantidade absurda de maça, pêssego,kiwi, cenoura, geléia de morango, atum, bolacha, batata, enfim, a lista é grande, e nada do que vem dentro dela é passível de se comparar com uma cesta básica brasileira. Só a farinha, talvez.
Não coube tudo na geladeira, claro, mas vou ter que me acostumar com o fim das vacas magras e aprender a passear de ônibus por Jerusalém sem pagar. Ao contrário de outros lugares, aqui, qualquer lugar que se vê pela janela, você está em Jerusalém: é sempre um passeio charmoso, interessante e cultural andar de ônibus pela cidade. Até porque, escaldada de ônibus paulistano e frequentadora assídua em ler xerox de texto, em pé, no Butantã-Usp, os ônibus israelenses, confortáveis, limpos, com ar condicionado no calor, aquecedor no frio, e espaços entre os bancos que nos informam que seres humanos existem e precisam de conforto, ainda me causam sensação de civilidade e surpresa, embora eu já ande de ônibus aqui há um ano. Talvez seja exatamente como diz minha amiga Carol Vasconcelos, a gente nunca esquece do perrengue.

(Detalhe tipicamente israelense: ganhei a cesta nadabásica e o ônibus pelos próximos quatro ou cinco anos porque agora sou uma estudante de doutorado da Universidade Hebraica e nova imigrante. Outro: as ONGS aqui, funcionam.)


Essa semana também descobri que quando entro no meu prédio, Samira sai correndo do meio das plantas do jardim para minha janela. Entendi, então, porque toda vez que abro a porta ela está me esperando.
E para findar o post da semana: Eduardo Weisz completou o ciclo talmudico e hospitaleiro da minha entrada na Universidade Hebraica de Jerusalém. Fechamos o ciclo fazendo a minha matricula, indo à Biblioteca, retirando livros, macarrão, vinho tinto, e, para registrar, posamos para fotos no anfiteatro da Universidade Hebraica no Monte Scopus, com o deserto da Judéia como pano de fundo. ah, e para variar, estou de mudança, mas esse é assunto para outro dia.


Shlomit e Eduardo Weisz no anfiteatro da Universidade Hebraica de Jerusalém.

sexta-feira, 18 de setembro de 2009

Quinhentos e vinte e cinco mil e seiscentos minutos


Começam nossos preparativos para o jantar de Rosh Shaná hoje à noite. Durante toda a semana ficamos de lá para cá, quero dizer, de casa em casa, falando ao telefone com o Hugo no supermercado ( falta passas! falta beterraba! compra manteiga!) trazendo e unindo as coisas: mel, maças, frango, peixe, cebola, alho,arroz, bolo, lista infindável que ia direto para a geladeira e congelador do Yehudá. Não tivemos, como era natural, nenhum conflito, e conforme a semana foi passando, a geladeira lotando das compras, fui percebendo que formávamos uma familia bacana, praticamente perfeita: Yehudá fornece o conforto da mesa, da sala, da cozinha, da casa dele que é linda e os superfluos essencias e chiques como vinho, por exemplo; eu, cozinho e cuido das comidas e o Hugo, bem, o Hugo é o dono do dinheiro, o provedor da festa que a gente faz acontecer com nossa geladeira com tudo dentro.
Como não podia deixar de acontecer pensei, pensei e sorri bastante. Formamos sim uma familia ao estilo Rent, o musical do Jonathan Larson. Partilhamos o ano inteiro companhia, comida, falta e chegadas de dinheiro, uma gripe aqui outra acolá, e o aluguel sempre entre nossas conversas.
Quero deixar aqui um carinho para o Yehudá e para o Hugo que me trouxeram a lembrança esse musical incrível que fala do amor entre os amigos:

"Quinhentos e vinte e cinco mil e seiscentos minutos
Quinhentos e vinte e cinco mil momentos bons
Quinhentos e vinte e cinco mil e seiscentos minutos
Como se mede... mede um ano a mais?
Em dias? Em pores-do-sol?
Em noites? Em copos de café?
Em polegadas? Em milhas?
Em risos? Em conflitos?
Em quinhentos e vinte e cinco mil e seiscentos minutos
Como você mede um ano pra viver?
Que tal medir em amor?
Meça em amor
Tempos de amor

Quinhentos e vinte e cinco mil e seiscentos minutos
Quinhentos e vinte e cinco mil jornadas para planejar
Quinhentos e vinte e cinco mil e seiscentos minutos
Como medir a vida
de uma mulher ou de um homem?

Em lições que ela aprendeu,
Ou nas vezes que ele chorou
Em pontes que ele ergueu,
Ou no caminho que ela morreu?

É agora o tempo - para cantar
Essa história que nunca termina
Vamos celebrar
Relembrar um ano
Na vida de amigos
Relembrar o amor
Meça em amor
Meça
Meça sua vida em amor
Tempos de amor
Tempos de amor"

terça-feira, 15 de setembro de 2009

segunda-feira, 7 de setembro de 2009

Janelas Abertas nº 3

"Mas eu prefiro abrir as janelas..." (Caetano Veloso em Janelas Abertas nº2)

Aqui ela se chama Samira. Não sei se possui outros nomes, outras pessoas, outras janelas. Chega com muita, muita fome. É uma bela gata malhada de branco, amarelo e cinza. Olhos esverdeados, carinhosos. Patas e unhas nem tanto. Já experimentei. Fiquei brava, fechei a janela. A gata sentiu. Se tornou um pouco mansa após o ocorrido. Um pouco. Não mais que isso. O suficiente: um pequeno carinho quando sirvo o leite. Não lhe agrada entrar. Toma seu leite e depois senta na janela olhando para fora, de onde veio, enquanto eu fico olhando-a de dentro, donde estou. Outro dia o Samir, meu namorado, se deu conta da estátua viva sentada na janela, tentou espantá-la. Ela não gostou e não se moveu. Eu ri. Gosto dela. Está prenha. São dois meses de uma discreta amizade e respeito entre nós duas. Na verdade ela apareceu antes. Mas meu susto gritou tanto que o vizinho colocou a cabeça para fora da sua janela para ver se estava tudo bem comigo. Estava. A gata desapareceu e eu passei por maluca. Mas ela voltava a voltar, espionava meu silêncio.

Na semana em que entrei com o pedido de doutorado na Universidade Hebraica de Jerusalém, há uns dois ou três meses atrás, a gata ganhou leite pela primeira vez. No dia seguinte, apareceu de novo, leite outra vez, e nessa ganhou o nome, Samira. Conforme a gata vinha, as semanas iam, a geladeira escasseava devido a quantidade de documentos traduzidos e juramentados que a Universidade Hebraica exigia e Samira passou a tomar água aqui em casa. Ela e eu. Dei para conversar com a gata em português. Palavras poucas: -Samira, as coisas vão melhorar e vamos voltar a ter leite, nós duas. A gata fazia que entendia. Generosa, me poupava traduções.

Quando fui ao escritório da Universidade Hebraica entregar a última tradução juramentada, e, enquanto a senhora Tova abria o armário para retirar a pasta do meu processo de doutorado e falava, eu apenas ouvia e via caixinhas e caixinhas de leite transformadas nela. Voltei para casa nessa tarde pensando no ônibus que miséria pouca era bobagem mesmo, e , afinal, eu havia conseguido traduzir e juramentar todo meu curriculo. Hora de comemorar. Passei no supermercado, comprei um litro de leite e esperei Samira. Nos fartamos. Dali em diante, mesmo contando moedas, passei a comprar leite uma vez por semana muito mais para a Samira do que para mim. Cismei, ou inventei, tanto faz, que a gata trazia um recado de prosperidade em tempo de leites magros.

Posso explicar um pouco melhor para não acarretar sentimentos de comiseração no leitor, coisa que não carece: durante todo esse tempo estive com trabalhos; fotos, a Dona Clarita de quem sou dama de companhia aos domingos, artigos, os Iacoov para quem dou uma ajudazinha na cozinha kasher da senhora Ruth, revisão da tese no Brasil, enfim, superlotada de afazeres remunerados. Não faltou trabalho. Nem dinheiro. O caso, é que tive que diminuir consideravelmente o consumo dos luxos e depois das amenidades conforme aumentavam as páginas que iam para a tradutora juramentada que, talvez, tenha feito o seu supermercado por minha conta durante os últimos dois meses.

Então, eu sabia que minha fase de misere estava escaldada por uma causa justa, o doutorado, porque o processo aqui é completamente diferente do Brasil. Tive banca que leu minha tese de mestrado, que leu meus artigos, que deu pitaco no meu curriculo. Além disso, para você ter o direito à formação de uma banca somente para você não basta ter lindos olhos: é necessário ter aprovação da tese de mestrado acima da nota 85, artigos publicados em revistas especializadas e cartas de referência de profissionais renomados na sua área, dizendo que sim, que você dá conta do recado, além de ser afável, inteligente, pesquisador, leitor, estudioso e possui um futuro promissor. E dá-lhe tradução de toda uma vida dedicada ao estudo.

Claro que essa conjectura era formada também por uma comissão de amigos e conhecidos aptos para ajudar e dar mais que uma força: duas, três, quatro, cinco, seis forças. A comissão era pequena e muito ativa: Hugo, Eduardo Weiss, Yehudá, Samir, Ana Villanueva e minha mãe. Mas a Samira, a gata , virou uma espécie de Ganesha com patas, e ao compartilhar água comigo como se fosse leite dos deuses, trouxe-me a sensação de que a fartura é composta pela expansividade de saber entrar, permanecer e sair pela janela, como se portas fossem coisas por demais óbvias para uma gata que não se incomoda nem se acomoda.

Numa dessas idas e vindas de Samira quando já não havia nada a fazer senão esperar o resultado da Universidade Hebraica, recebi a carta oficial parabenizando-me por ser aceita como pesquisadora. Vibraram, os de longe e os de perto, os que não tinham dúvida e os que já sabiam por intuição. Todas as pessoas que dividiram a vitória comigo, comemoraram. Era certo que eu também comemoria com um bom vinho tinto israelense. Postei em meu MSN e Skipe a palavra "comemorando" e voltei do supermercado com três litros de leite integral. Esperei Samira que chegou sem nenhuma dúvida. Fiz um chocolate para mim, e, enquanto ela se enroscava no vidro da janela, preparei seu leite no potinho vazio de margarina. Coloquei-o no parapeito, e, brindando, desejei que Samira e seus filhotes sempre encontrem janelas bacanas que dividam seu leite com ela.
Le Chaim!*


* "à vida" , brinde em Hebraico.