sábado, 21 de agosto de 2010

transjerusalém - são pulo, brasil (Gama, Luciana. "exéquias" In Os Macunaítas)

Para efeito epigráfico: epígrafe de epigrafe tudo é epígrafe

"Fatigado
Das minhas viagens pela terra
De camelo e táxi
Te procuro
Caminho de casa
Nas estrelas
Costas atmosféricas do Brasil
Costas sexuais
Para vos fornicar
Como um pai bigodudo de Portugal
Nos azuis do clina
Ao solem nostrum
Entre raios, tiros e jaboticabas."

(Oswald de Andrade  In Serafim Ponte Grande: Fim de Serafim)

domingo, 1 de agosto de 2010

Trechos: Os Macunaítas de Luciana Gama

(Tudo bem. Você pede noticias devidas ao sumiço. Me cobra que devo satisfação aqui no blog, lá vai, se segura, malandro: Uma semana perdida fazendo as exéquias dos Macunaítas, cujos recortes, trechos -para usar palavra mais simpática- vão sair numa revista de literatura. Quando? não sei, aviso. Chancelaram, por fim, Os Macunaítas. Depois, mais dez dias em plena narrativa: não vi o tempo passar e nem as páginas crescerem. Somente ria e via ao meu redor um monte de santo: José Candido de Carvalho, Manuel Antonio de Almeida, Machado do Memórias Póstumas, e, Millôr de vez em quando. O capítulo II, "O Sequesttro da Sátira", é desenho com mínimos detalhes, croqui,  tinta a óleo, moldura. Mando amostra grátis . beijo na familia, na Cecília e nas crianças, prá todo pessoal, adeus:)


"...Mário de Andrade também não era. O achamento de um povo que sempre se entranhou na veia da sua terra e se misturava impertinente também a sua biblioteca cerebral a partir daquele instante, o do descobrimento vital propriamente dito, levou-o a arrumar algumas poucas peças de roupa e abrir a mala poenta por cima da cadeira do quarto: dois ternos de casimira inglesa, o terceiro, de linho branco s120, iria no corpo assim como o chapéu de aba larga para o forte sol de Araraquara  que levaria enterrado na cabeça; camisas de manga, quatro, papel, loção francesa Revê Rose para passar na calvície, caneta e tinteiro, pó-de-arroz- poderia ser útil em algum evento social à noite- e os lenços caprichosamente bordados com suas iniciais, MA, por tia Nhanhã, misturados a três sambas-canção e ceroulas, poderiam ser  úteis mesmo no calor, o pijama de listras largas com botões grandes, o robê de seda, chinelos e meias: Mário não andava descalço. Livro nenhum entrou na mala de organizada angustia, somente os fichamentos das ultimas leituras que vinha fazendo. Não eram poucos: os do cinco volumes de Von Roraima Zun Orinoco  ocupava o equivalente a um par dos sapatos sob medida da Sapataria Guarani, a mais cara de São Paulo, sempre no modelo escocês furadinho de bico afinado.(...)" (Gama, Luciana. Os Macunaítas, In: cap II, O Sequestro da Sátira ou O Rapto dos Macunaítas ou O Nome da Palmeira)

 (...)De vez em quando, era notório, Mário gargalhava refestelado e esquecido da sua gravidade de maneiras e lotava o ambiente chacoalhando risonho todo seu corpo alto, magro, enorme; mesmo assim, era riso que em nada lembrava a sonora gargalhada dos índios Umutina quando o Padre Salesiano Nicolau Badariotti, às vezes, assentado sobre uma pedra ou sobre algum tronco de madeira rodeado de trinta ou quarenta índios contava coisas da Europa procurando explicar-lhes por meio de imagens. Os índios Umutina imaginavam que o Brasil fosse todo o mundo; admiravam-se pois ouvindo o padre dizer que além do grande rio (oceano) existia a Europa dividida em muitos países de línguas diferentes, etc; o cúmulo de admiração era significado por sonora gargalhada, então. Essa gargalhada, a mesma de Oswald, jamais seria a de Mário."
(Gama, Luciana. Os Macunaítas, In: cap II, O Sequestro da Sátira ou O Rapto dos Macunaítas ou O Nome da Palmeira)

(...) Mário voltou para casa puto, atordoado, mais atordoado do que puto, varou o resto da noite, madrugada adentro, retirando e abrindo livros da sua biblioteca, nenhum, nenhum, nenhum, nenhum, nada sobre macunaítas, esses macunaítas não existem, concluía Mário, exausto, lá pelas sete e meia da manhã, agora muito puto, pressentindo que caíra numa piada invenção de Oswaldo que levou toda sua noite. Acordou tarde, meio dia, desperto pela conversa entre sua mãe e tia Nhanhã, uma ladainha sussurrada que chegava até seus aposentos e desceu as escadas, sonolento, no robe de seda, que interromperam a conversa com sorrisos de senta aqui, meu filho, vamos preparar seu desjejum. Pouco importava para elas, mãe e tia, tão bom era aquele filho sobrinho, suas peregrinações dentro da noite veloz e tampouco se acordava tarde ou cedo tamanha a dedicação que Mário, sujeito pacato e estudioso desde menino, pena que não continuou sua dedicação à igreja, começou tão menino, coroinha exemplar, pensavam em conjunto mas jamais comentavam entre si que Mário, depois de dezessete mais ou menos, nunca mais as acompanhou à missa, pouco importava, nosso menino, agora moço, continuava exemplar, cuidadoso, cada dia mais refinado, discreto, estudioso , caseiro e tímido, o que era a mais pura verdade: pouco importava para a mãe, para a tia, para o irmão, para os moços de então que se sonhavam futuros escritores e poetas  que escreviam cartas que Mário respondia com dedicação e ardor, como Carlos e Fernando, pouco importava para amigos mais íntimos como Manuel e Rosário Fusco, ou para aqueles alegres rapazes de Clima, ou mesmo para as viúvas de Mário, como ficaram conhecidas à boca miúda as cuidadoras oficiais do seu espólio intelectual no Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo incentivadas por aqueles mesmos alegres moços de Clima, agora homens feitos, pouco importava que nosso menino não casou, que nosso menino gostava de meninos e meninas e bananeiras e galinhas e uma vez, uma mula, arre, tão pouco importava que esse pedaço da história não foi importado mas deliberadamente ocultado aqui, ajustado ali, será o benedito, importava mesmo que nosso menino, naquele dia, sentado no sofá, cruzando as pernas do robe de seda sulferino escuro que deixava uma listra larga da perna  direita do pijama de fora, enquanto a mãe e a tia preparavam o café gostoso, o café bom, o café preto que nem a preta velha, haveria de numa pulsão nunca cometida por ele antes, nem mesmo em Há uma Gota de Sangue em cada Poema ou na torrente de inspiração lírica que o acometeu em Paulicéia Desvairada, haveria de no dia seguinte, de noite, já em Araraquara e poucadissímo esquecido da raiva que Oswald o havia feito passar, ora bolas, uma noite toda procurando em sua vasta biblioteca por um povo que jamais existiu, começar, deitado na rede, o que viria a ser também em seis dias, o seu gênese, o nosso antigo testamento, o livro que o tornaria Deus: Macunaíma, o Herói sem nenhum caráter. (...) (Gama, Luciana. Os Macunaítas, In: cap II, O Sequestro da Sátira ou O Rapto dos Macunaítas ou O Nome da Palmeira)