Samira, a gata, aquela que eu cismei que trazia presságios em tempos de vacas magras, apresentou minha janela para um conhecido. Ele é ruivo, muito mais arisco do que Samira ( que nessas alturas do campeonato já me deixa acariciá-la, mas continua sem entrar em minha casa) sendo que não posso fazer menção de nenhum movimento mais próximo que ele sai correndo. No entanto, ela o trouxe, eu vi. E agora se encontram na minha janela. Acham que dividem o leite, ou talvez não, talvez houvesse uma conspiração cósmica para que eu dobrasse os potinhos de margarina. Yossef, este é seu nome, é um gato askenazi, israelense, judeu. Depois de estudar com olhos muito atentos a desenvoltura de Samira no parapeito da janela resolveu dar uma passo adiante, e, ao contrário dela que faz carinho, come e vai embora, ele não faz menção de afeto explicito: se farta de leite exatamente como ela mas dorme na janela. Não vai embora. Deita no parapeito e descansa olhando para dentro, medindo cada movimento meu. Emana longas piscadas do seus olhos e ressona sossegado e atento. Um guardião.
Quando Yossef chegou pelas patas de Samira pensei que deveria assumir também a presença dele. Afinal ele não é um gato qualquer, é um gato grato, que me doa companhia. Ainda com uma certa intuição de que Samira era um recado benfazejo achei que dois gatos, então, era recado duplo. E era mesmo.
Ganhei, através de um doador amigo que me inscreveu numa ONG, duas cestas básicas por mês além do passe livre para o ônibus. Essa semana vi a cesta básica entrar, e, havia tanto leite nela, além de queijo cottage, manteigas, kashe, champignon, azeitona, milho, uma quantidade absurda de maça, pêssego,kiwi, cenoura, geléia de morango, atum, bolacha, batata, enfim, a lista é grande, e nada do que vem dentro dela é passível de se comparar com uma cesta básica brasileira. Só a farinha, talvez.
Não coube tudo na geladeira, claro, mas vou ter que me acostumar com o fim das vacas magras e aprender a passear de ônibus por Jerusalém sem pagar. Ao contrário de outros lugares, aqui, qualquer lugar que se vê pela janela, você está em Jerusalém: é sempre um passeio charmoso, interessante e cultural andar de ônibus pela cidade. Até porque, escaldada de ônibus paulistano e frequentadora assídua em ler xerox de texto, em pé, no Butantã-Usp, os ônibus israelenses, confortáveis, limpos, com ar condicionado no calor, aquecedor no frio, e espaços entre os bancos que nos informam que seres humanos existem e precisam de conforto, ainda me causam sensação de civilidade e surpresa, embora eu já ande de ônibus aqui há um ano. Talvez seja exatamente como diz minha amiga Carol Vasconcelos, a gente nunca esquece do perrengue.
(Detalhe tipicamente israelense: ganhei a cesta nadabásica e o ônibus pelos próximos quatro ou cinco anos porque agora sou uma estudante de doutorado da Universidade Hebraica e nova imigrante. Outro: as ONGS aqui, funcionam.)
Essa semana também descobri que quando entro no meu prédio, Samira sai correndo do meio das plantas do jardim para minha janela. Entendi, então, porque toda vez que abro a porta ela está me esperando.
E para findar o post da semana: Eduardo Weisz completou o ciclo talmudico e hospitaleiro da minha entrada na Universidade Hebraica de Jerusalém. Fechamos o ciclo fazendo a minha matricula, indo à Biblioteca, retirando livros, macarrão, vinho tinto, e, para registrar, posamos para fotos no anfiteatro da Universidade Hebraica no Monte Scopus, com o deserto da Judéia como pano de fundo. ah, e para variar, estou de mudança, mas esse é assunto para outro dia.
Shlomit e Eduardo Weisz no anfiteatro da Universidade Hebraica de Jerusalém.